terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

José Cícero – Meio Ambiente: Uma visão amarga do rio Salgado

FOTO: JOSÉ CICERO  APONTANDO O RIO SALGADO.


No dia e na semana do Meio Ambiente, nada tão importante e fundamental do que analisar a história e a situação de degradação por que passa o rio Salgado, o principal manancial do Cariri.

Na semana em que o mundo se debruça sobre a celebração do Dia do Meio Ambiente, no sentido de despertar as atenções para os graves problemas relacionados à biodiversidade e os recursos naturais, nós careirenses deveríamos igualmente atentar para a situação de calamidade e penúria por que passa o maior manancial do Cariri – o rio Salgado. Fomentador natural através do qual todo o Cariri foi colonizado e se desenvolveu até os dias atuais.


No passado, o Salgado foi por assim dizer, o caminho natural em torno do qual os “desbravadores”, os almocreves, os colonizadores, dona Aurora e tudo o mais que chegou por estas bandas vieram inicialmente em função da existência do rio, como sinônimo de fartura e de prosperidade anunciada. Para enfim, edificar no Sul do Ceará, este conglomerado regional-urbano situada no grande vale, o qual se convencionou denominar de o Oásis sul cearense. Um importante pólo cultural e econômico do Ceará que malgrado outros aspectos tem uma importância fundamental para todo o estado.


No entanto este processo de colonização deixou também um rastro de destruição de toda sorte para o bioma da nossa caatinga e todo o ecossistema do Salgado. Uma história de destruição ambiental sem precedente. O que resultou no que se tem hoje: um rio à beira do esgotamento total. Um manancial que permanece na UTI ecológica diante dos olhares míopes de uma sociedade cada vez mais sedenta e indiferente, insensível a todo o estado de degradação e morte anunciada por que passa o Salgado do Cariri. Uma situação que muito bem poderia ser intitulada: “Todo o amargo de um rio Salgado”.
  
O Salgado foi também o berço da grande nação dos Kariris-novos. Etnia indígena que a exemplo do próprio rio sofrera as primeiras investidas deletérios da nova civilização colonizadora cega de poder e riquezas. De tal modo, que os índios Cariris foram aos poucos sendo expulsos da sua própria terra e, consequentemente praticamente exterminados. Como foi a praxe dispensada pelos homens brancos a todas as nações indígenas do Brasil ao longo da história. Como se isso fosse uma maldade latente, impregnada no próprio DNA dos chamados homens brancos até os dias atuais. Mas, digamos que o rio Salgado desde os primórdios, tem sido também uma vítima em potencial deste processo acelerado de destruição e maldade por meio do qual o homem branco tem se comportado em relação a quase tudo que diz respeito a natureza e aos recursos naturais.


O rio Salgado é como se fosse um livro aberto, carcomido em cujas páginas a duras penas ainda mantêm escrito toda uma cruzada de intensa violência e agressões efetuadas contra a natureza da região e ao ecossistema em seu entorno. O rio Salgado foi a célula germinativa responsável pelo surgimento de Aurora e de toda a região. O rio Salgado é nosso arquidicionado natural. É nossa ligação mais efetiva e natural como o Atlântico e, portanto, com o mundo.
  

Com aproximadamente 42 km do seu leito cortando o município de Aurora de uma ponta a outra no sentido Sul-Norte, o Salgado é por assim dizer, um rio por excelência aurorense. Antes no seu nascedouro recebe o nome de Batateiras, depois de Granjeiro, Salgadinho e Missão Velha. Apenas quando adentra as terras aurorenses é que se torna grande, adulto, forte, possante, majestoso, se aprofunda e se alarga, ganhando enfim volume de água, assumindo um aspecto digno de um rio elegante. E assim segue seu itinerário natural, serpenteando divinamente, pelas ribeiras do Cariri Oriental espalhando sua fertilidade por mais de 23 municípios numa extensão de quase 300 km.


Com uma capacidade de acumulação de água superficial de cerca de 447,41 milhões de metros cúbicos com uma bacia composta por 14 açudes. Irrigando apenas em Aurora pouco mais de 4 mil hectares de terra, seguindo assim a gravidade natural do nosso chão até desaguar na altura do Icó desembocando nas fímbrias do Jaguaribe a se precipitar no castanhão e de lá, para o mar do Atlântico. Mas antes o Salgado “adoça a vida e alma” de todo o povo caririense em especial, dos aurorenses que há muito mantêm uma relação muito estreita de amor com suas águas e beleza. Aurora de fato, por tudo isso, é um presente do Salgado.


O Salgado que é um eterno milagre sempre a possibilitar a multiplicação do pão da terra para os seus filhos como se todos fossem seus filhos-moradores ribeirinhos... Quase sempre grávidos de bonança e de promessas o Salgado mata a sede e alimenta a fome e as necessidades dos seus protegidos, O Salgado é um instante eterno de grandes e absolutas alegrias. O Salgado é a certeza de um recomeço sempre prometido no horizonte das esperanças sertanejas. Uma relação profunda de afeto e gratidão com os homens e mulheres que trabalham a terra a irrigando com o suor do rosto e os calos das mãos. O Salgado e a mais próxima e autêntica ligação que existe de toda uma gente dos grotões do Cariri com o chão das nossas raízes ancestrais.


A perspectiva do futuro melhor sempre expresso no semblante e no coração do que acreditam na fartura da terra, assim como na providência divina sob a intercessão do padre Cícero e Frei Damião. O sangue da luta da nossa ancestralidade sempre a irrigar de esperança a fertilidade da região, como se fosse a ponta do punhal de Virgulino, o Lampião. O saldo é sempre assim: um misto das coisas que sempre engrandecem para o todo e sempre o Cariri e os aurorenses onde que quer se encontrem.


Mas, infelizmente, o Salgado está morrendo. Porém os seus gritos de socorro só podem ser ouvidos por aqueles que vêem mais pelos olhos da alma, da consciência, da ética e do coração. O Salgado é um estado de espírito que sempre nos eleva. Nunca o Salgado precisou tanto dos contemporâneos. O Salgado está na UTI, prestes a entrar em como profundo. E quando chegar a este dia que já se avizinha, a situação se tornará irreversível. Será um caminho sem volta. E a natureza irá cobrar de todos nós seus honorários ecológicos com juro e correção. E a partir daí, talvez pela primeira vez, possamos quem sabe perceber o quão cruéis fomos todos na maneira irresponsável e desarmoniza com que nos relacionamos com esta verdadeira dádiva da vida que os céus ofereceram aos homens. Urge que pensemos em tudo isso enquanto ainda há tempo para alguma coisa. Um grande abismo começa a se abri sob os nossos pés. Temos que ter olhos, consciência e ouvidos para este perigo.


Salvemos então o Salgado, enquanto temos condições objetivas. Já estamos quase no tempo e no ponto limite. Daqui a pouco será um caminhos sem volta. O Salgado clama por nossa intervenção sustentável e solitária. É ele o maior símbolo de exuberância da nossa natureza que nos rodeia. O Salgado é singular naquilo em que é mais plural, ou seja: o modo como sustentou toda uma geração com os seus recursos naturais sem nunca pedir algo em troca. Todo o Cariri e o Ceará como um todo mantém uma dívida impagável com este manancial do vale fértil correndo calmante sob os pés do Araripe.



O Salgado está morrendo. Precisa com urgência ser revitalizado juntamente com os seus afluentes. O Salgado é um exemplo de exaltação a própria vida do Planeta. Para tanto precisamos defendê-lo como quem defende até as últimas conseqüências o próprio filho. Do contrário, quem sabe poderemos conhecer o mesmo fim que tiveram os dinossauros. Nossa autodestruição não constitui mais uma utopia catastrófica, mas uma possibilidade das mais previsíveis, caso não mudemos desde já, nossa relação com a natureza e a biodiversidade como um todo.


Defender o Salgado precisa ser uma prioridade de cada cidadão, inicialmente assumida com sua própria consciência como premissa para a cidadania e a manutenção da própria vida, de todos como mais uma espécie que também corre perigo, no claro caminho da autodestruição. Viva o rio Salgado e que o Salgado viva para sempre nos nossos corações. A vida da biosfera e as futuras gerações dependerão das atitudes que tomaremos agora, sem demora... Viva o Salgado, viva!



José Cícero é professor, pequisador e Secretário de Cultura, Turismo e Desporto de Aurora-CE.

Nenhum comentário: