Por José Cícero da Silva*
Já era
meia-noite da última segunda-feira, dia 28. Uma noite das mais morosas e calorentas
como a se espalhar sob um céu de chumbo, escuro sem lua e sem nenhuma estrela a
iluminar o firmamento.
Noite ideal para as 'andanças penitenciais por este
mundo perigoso de meu Deus', conforme depois me confidenciaria um dos irmãos
caboclos, decurião e mantenedor do velho grupo de 'irmãos' aurorenses na sua
grande maioria residentes no sítio Salgadinho e redondeza. Alguns, aumentando
os índices do êxodo rural já se encontram morando, inclusive na cidade.
Olhávamos para o relógio: Eu e o dono da casa -
anfitrião da "celebração místico-religiosa" a quem todos eles
denominam de "terço" ou "alertai" dos penitentes.
Pequena e simples era a residência, localizada
quase no bairro Araçá. A realização do 'terço' assinalaria o aniversário dos 71
anos do proprietário - o Sr. José Serafim. Um aposentado vindo das bandas do
sítio São Miguel, autêntico admirador do grupo desde sua época de menino. Que
tempos depois, já grande veio a saber que o seu pai também fizera parte de um
grupo da região do rio do Jatobá e Taboca.
Quase nenhum convidado em especial, além de mim e
mais três amigos do aniversariante. Reza a tradição, que o acontecimento só é
válido quando se cumpre e preserva o anonimato e o segredo do ritual. Coisas do
passado, mas que deverá ainda hoje ser cumprido pelo menos em parte, segundo os
penitentes. Prova desta mudança é o fato de que "eles" agora; mesmo
com relativa reserva, ainda se deixam ser filmados, fotografados até mesmo sem
a hermética e misteriosa cobertura dos rostos. Agora já é possível,
inclusive, a identificação de cada um deles. Apenas os mais antigos ainda se
mantêm um pouco discretos e resistem em mostrar o semblante diretamente para os
estranhos e curiosos.
Mas há anos, desde a reportagem que produzir para o
Jornal Diário do Nordeste (Caderno regional), bem como para a edição de
lançamento da Revista Aurora que me tornei amigo deles. De lá para cá,
sempre que posso acompanho alguns terços e, inclusive rituais de flagelação,
especificamente durante o período da Semana Santa. Mas cada "alertai"
dos penitentes da Ordem Santa Cruz de Aurora é um fato novo. Puro
realismo fantástico repleto de mistérios, litanias e oblações. Ver os
penitentes em seus trajes e de rostos cobertos pelos escuros das noites
sertanejas com suas "disciplinas" de metais sob o pescoço e na frente
do grupo o decurião com o cruzeiro sagrado é um fato superlativo.
Um grande acontecimento em que o profano e o
sagrado se juntam num só espaço mundano, dando assim, vazão as emoções humanas
mais recônditas corporificadas por meio de antigas crenças religiosas, além de
medos e utopias derramadas num sem-número de causos e tradições que marcaram
para sempre gerações inteiras por estes sertões adentro.
E a noite corria na direção da madrugada. Ansioso
eu aguardava a chegada dos beatos em suas belas, porém esquisitas vestimentas,
na sua maioria de cor branca com detalhes vermelhos distribuídos numa cruz
junto ao peito - o que eles chamam sugestivamente de 'hábito'. Apenas um
dos indivíduos se apresentou vestido num "hábito" de cor escura -
pertencente a outro grupo, não mais existente do conhecido decurião Zé Carneiro
do Pau Branco e da Malhada Funda. Depois o ecoar dos cânticos a suplantar o
silêncio mórbido da noite em seu estado profundo de solidão...
Essa é uma das nossas mais remotas tradições
religiosas, a duras penas, lutando como pode contra os fantasmas da
modernidade. Numa luta, como se percebe extremamente injusta e desigual. Eis,
por assim dizer, a chamada igreja laica ainda pulsante e sangrando na
mente e nos músculos de homens simples e determinados, como os irmãos caboclos
e tantos outros dedicados de corpo e alma a esta crença valente e medievo.
Um grupo de resistência que jamais se entrega.
Irmãos da Ordem Santa Cruz - Uma ferida do tempo encarnada na alma de homens
bravios querendo a todo custo aplacar seus pecados e as dores do mundo, ante
suas próprias chagas abertas pelo sofrimento. Prometeu e Sísifo mitológicos dos
nossos rincões remotos do Nordeste e do Cariri cearense. Um inusitado passado
ainda em carne viva como um ato de desafio às coisas e as maldade do tempo
presente...
O grupo de penitentes de Aurora representa um dos
últimos remanescentes de um antigo culto sacro-tradicional, não
apenas do nosso município, mas de toda a região do Cariri.
Por fim, os homens de branco com suas passadas
largas e silenciosas surgiram como que do nada na esquina da rua. De súbito,
adentraram a casa cantando os seus benditos e suas ladainhas carregadas de
estranhamento. Era como se o mundo se enchesse de vozes. Coral harmoniosamente
entoado, com pronuncias no mais das vezes indecifráveis. Quase um canto
beneditino dos sertões careirenses - imaginei.
A sala da casa agora estava repleta de penitentes
em seus cânticos e rezas como se estivessem em pleno transe. Um ritual
estranho, mas que no fundo era maravilhoso. Era como se o sagrado estivesse
como nunca ali diante de nós. O aniversariante - dono da casa, assim como
sua esposa, Dona Maria estavam felizes com aquela celebração que duraria pouco
mais de uma hora e meia. Estavam sorrindo por dentro e por fora... Sob a luz
opaca e esmaecida apenas dos santos a encher a parede e logo abaixo o cruzeiro
enfeitado do grupo, na frente do quais todos cantavam e rezavam. Depois, um por
um o beijava com respeito e louvação.
No encerramento, todos saborearam a sopa
oferecida pelo casal. Outros optaram pelo café sentado no terreiro para um cigarro.
Outros preferiram chá, refrigerantes acompanhados de sequilho e outras
guloseimas. Depois das despedidas de praxe, todos saíram como chegaram - num só
grupo e em silêncio. Nada exigem como pagamento...
Os membros do grupo se despedem, se reúnem e se dividem
(como se juntam) num local dos mais ermos e escuros do lugar lá para as bandas
do Recreio no corte grande da linha do trem. Coisas que apenas eles podem tomar
conhecimento antecipadamente.
Assistir o terço dos penitentes é como voltarmos
num tempo remoto, posto que nos reencontramos com nossas melhores
tradições ancestrais. De modo que, assisto a celebração dos beatos com imensa
saudade e preocupação, visto que daqui há pouco, tenho a sensação de que
os penitentes, assim como tantas outras tradições da nossa cultura
interiorana possam desaparecer no tempo para sempre.
Assisto os penitentes, portanto com este enorme
sentimento de perda... Mas, confesso que esta manifestação é puro colírio para
os meus olhos. Assim como um refrigério de lembranças e alívio para o meu ser
vazio de contentamento e o meu espírito cansado de tantas mazelas e tédio da
modernidade.
(*) Prof. José Cícero
Secretário de Cultura, Turismo e Esporte
Aurora - CE.
(*) Prof. José Cícero
Secretário de Cultura, Turismo e Esporte
Aurora - CE.
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