quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

AURORA E O {TERÇO} DOS PENITENTES



Por José Cícero da Silva*



Já era meia-noite da última segunda-feira, dia 28. Uma noite  das mais morosas e calorentas como a se espalhar sob um céu de chumbo, escuro sem lua e sem nenhuma estrela a iluminar o firmamento. 

Noite ideal para as 'andanças penitenciais por este mundo perigoso de meu Deus', conforme depois me confidenciaria um dos irmãos caboclos, decurião e mantenedor do velho grupo de 'irmãos' aurorenses na sua grande maioria residentes no sítio Salgadinho e redondeza. Alguns, aumentando os índices do êxodo rural já se encontram morando, inclusive na cidade.

Olhávamos para o relógio: Eu e o dono da casa - anfitrião da "celebração místico-religiosa" a quem todos eles denominam de "terço" ou "alertai" dos penitentes.

Pequena e simples era a residência, localizada quase no bairro Araçá. A realização do 'terço' assinalaria o aniversário dos 71 anos do proprietário - o Sr. José Serafim. Um aposentado vindo das bandas do sítio São Miguel, autêntico admirador do grupo desde sua época de menino. Que tempos depois, já grande veio a saber que o seu pai também fizera parte de um grupo da região do rio do Jatobá e Taboca. 

Quase nenhum convidado em especial, além de mim e mais três amigos do aniversariante. Reza a tradição, que o acontecimento só é válido quando se cumpre e preserva o anonimato e o segredo do ritual. Coisas do passado, mas que deverá ainda hoje ser cumprido pelo menos em parte, segundo os penitentes. Prova desta mudança é o fato de que "eles" agora; mesmo com relativa reserva, ainda se deixam ser filmados, fotografados até mesmo sem a hermética e misteriosa cobertura  dos rostos. Agora já é possível, inclusive, a identificação de cada um deles. Apenas os mais antigos ainda se mantêm um pouco discretos e resistem em mostrar o semblante diretamente para os estranhos e curiosos. 

Mas há anos, desde a reportagem que produzir para o Jornal Diário do Nordeste (Caderno regional), bem como  para a edição de lançamento da Revista Aurora que me tornei amigo  deles. De lá para cá, sempre que posso acompanho alguns terços e, inclusive rituais de flagelação, especificamente durante o período da Semana Santa. Mas cada "alertai" dos penitentes da Ordem Santa Cruz de Aurora é um fato novo.  Puro realismo fantástico repleto de mistérios, litanias e oblações. Ver os penitentes em seus trajes e de rostos cobertos pelos escuros das noites sertanejas com suas "disciplinas" de metais sob o pescoço e na frente do grupo o decurião com o cruzeiro sagrado é um fato superlativo.

Um grande acontecimento em que o profano e o sagrado se juntam num só espaço mundano, dando assim, vazão as emoções humanas mais recônditas corporificadas por meio de antigas crenças religiosas, além de medos e utopias derramadas num sem-número de causos e tradições que marcaram para sempre gerações inteiras por estes sertões adentro. 

E a noite corria na direção da madrugada. Ansioso eu aguardava a chegada dos beatos em suas belas, porém esquisitas vestimentas, na sua maioria de cor branca com detalhes vermelhos distribuídos numa cruz junto ao peito - o que eles chamam  sugestivamente de 'hábito'. Apenas um dos indivíduos se apresentou vestido num "hábito" de cor escura - pertencente a outro grupo, não mais existente do conhecido decurião Zé Carneiro do Pau Branco e da Malhada Funda. Depois o ecoar dos cânticos a suplantar o silêncio mórbido da noite em seu estado profundo de solidão...

Essa é uma das nossas mais remotas tradições religiosas, a duras penas, lutando como pode contra os fantasmas da modernidade. Numa luta, como se percebe extremamente injusta e desigual. Eis, por assim dizer, a chamada  igreja laica ainda pulsante e sangrando na mente e nos músculos de homens simples e determinados, como os irmãos caboclos e tantos outros dedicados de corpo e alma a esta crença valente e medievo. 

Um grupo de resistência que jamais se entrega. Irmãos da Ordem Santa Cruz - Uma ferida do tempo encarnada na alma de homens bravios querendo a todo custo aplacar seus pecados e as dores do mundo, ante suas próprias chagas abertas pelo sofrimento. Prometeu e Sísifo mitológicos dos nossos rincões remotos do Nordeste e do Cariri cearense. Um inusitado passado ainda em carne viva como um ato de desafio às coisas e as maldade do tempo presente...

O grupo de penitentes de Aurora representa um dos últimos  remanescentes de um antigo culto sacro-tradicional,  não apenas do nosso município, mas de toda a região do Cariri.

Por fim, os homens de branco com suas passadas largas e silenciosas surgiram como que do nada na esquina da rua. De súbito, adentraram a casa cantando os seus benditos e suas ladainhas carregadas de estranhamento. Era como se o mundo se enchesse de vozes. Coral harmoniosamente entoado, com pronuncias no mais das vezes indecifráveis. Quase um canto beneditino dos sertões careirenses - imaginei.

A sala da casa agora estava repleta de penitentes em seus cânticos e rezas como se estivessem em pleno transe. Um ritual estranho, mas que no fundo era maravilhoso. Era como se o sagrado estivesse como nunca ali diante de nós. O  aniversariante - dono da casa, assim como sua esposa, Dona Maria estavam felizes com aquela celebração que duraria pouco mais de uma hora e meia. Estavam sorrindo por dentro e por fora... Sob a luz opaca e esmaecida apenas dos santos a encher a parede e logo abaixo o cruzeiro enfeitado do grupo, na frente do quais todos cantavam e rezavam. Depois, um por um o beijava com respeito e louvação.

No  encerramento, todos saborearam a sopa oferecida pelo casal. Outros optaram pelo café sentado no terreiro para um cigarro. Outros preferiram chá,  refrigerantes acompanhados de sequilho e outras guloseimas. Depois das despedidas de praxe, todos saíram como chegaram - num só grupo e em silêncio. Nada exigem como pagamento...

Os membros do grupo se despedem, se reúnem e se dividem (como se juntam) num local dos mais ermos e escuros do lugar lá para as bandas do Recreio no corte grande da linha do trem. Coisas que apenas eles podem tomar conhecimento antecipadamente.

Assistir o terço dos penitentes é como voltarmos num tempo remoto, posto que nos  reencontramos com nossas melhores tradições ancestrais. De modo que, assisto a celebração dos beatos com imensa saudade e preocupação, visto  que daqui há pouco, tenho a sensação de que os penitentes, assim como tantas outras tradições da nossa cultura interiorana  possam desaparecer no tempo para sempre.

Assisto os penitentes, portanto com este enorme sentimento de perda... Mas, confesso que esta manifestação é puro colírio para os meus olhos. Assim como um refrigério de lembranças e alívio para o meu ser vazio de contentamento e o meu espírito cansado de tantas mazelas e tédio da modernidade.

                                        (*) Prof. José Cícero
Secretário de Cultura, Turismo e Esporte
Aurora - CE.

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